Há vários meses escrevia sobre uma preocupação específica trazida pela pandemia, o diagnóstico tardio e o tratamento postergado de muitas doenças. Quando escrevi, estava preocupado especificamente com câncer. Nas últimas décadas o diagnóstico precoce do câncer, seja ele de que tipo for, foi estimulado e obtivemos muitos avanços nesse sentido de diagnóstico precoce e tratamento com maior sucesso para esses pacientes. No último ano, no entanto, houve um grande retrocesso. Deixamos para trás esse foco.
Obviamente que não estou tentando diminuir a importância da pandemia, entendo que deva haver uma dedicação solene e profunda para o enfrentamento desse mal. No entanto, outros males continuam acometendo, inclusive matando pessoas, numa proporção que não se via antes.
O vaivém de cores das fases de enfrentamento que vivemos confunde um pouco a população. O que pode e o que não pode. O que está aberto e o que não está. Pode-se ir para consultas de rotina? Sim, serviços de saúde, mesmo para consultas e exames de rotina saúde foram rotulados como essenciais. No entanto, os hospitais nas últimas semanas não têm mais como atender quase nada que não seja Covid. Não há mais vagas nas enfermarias e UTIs de hospitais públicos e pouquíssimas nos privados.
Entendemos como necessário, diante do tempo que já passamos em pandemia, que exames e tratamentos precisam ser retomados de alguma maneira; especialmente para quem possui doenças crônicas, aqueles que fizeram tratamento para câncer, e os que tem históricos de casos de doenças entre familiares.
Até há poucos dias o atendimento eletivo havia sido suspenso na rede de hospitais para dar chance às emergências, tratamentos oncológicos e Covid. Novamente reforço que não se deva deixar de prestar esse atendimento. No entanto, o sistema de saúde pública de Campinas nunca foi suficiente para os casos habituais, e especialmente agora, a estrutura se mostra deficiente. Houve necessidade de se suspender o atendimento aos casos oncológicos. O cobertor é curto, a situação é caótica e existe um lado que sempre fica descoberto. Nesse momento, são os pacientes oncológicos.
Além das doenças crônicas, como hipertensão, diabetes, doenças da tiroide, que precisam de controle e tem procurado apenas as emergências do SUS, temos visto um número crescente e assombroso de portadores de neoplasia avançada, sem possibilidade de tratamento. Talvez ainda não tenha havido um aumento estatístico verificável no número de mortes, porque o câncer não mata imediatamente, mas apenas depois de alguns meses ou anos, quando não tratado, mas os casos graves e avançados estão muito mais frequentes. Muitos outros médicos também já alertaram em relação a isso desde o começo da pandemia em artigos escritos, lives, entrevistas e reportagens.
Deixou-se passar para esses pacientes, o momento de ouro em que se poderia investigar e tratar, oferecer uma chance de ver os próximos anos ou décadas, acompanhar os filhos e netos que ainda virão. Deixou-se que evoluíssem abandonados em sua doença.
O câncer de intestino, que é a minha área de atuação, é potencialmente curável nos estágios iniciais. E estamos deixando passar essa chance de cura para muitos pacientes. Pacientes jovens com tumores enormes e sem qualquer possibilidade de cura estão procurando os hospitais em caráter de urgência, com necessidade de tratamento emergencial, já com doenças avançadas localmente ou com metástases à distância, complicações em outros órgãos, perfurações e obstruções intestinais e urinárias. Nunca testemunhamos um número tão avassalador de doenças avançadas, em pacientes jovens, em que se perdeu o momento do tratamento adequado.
Os hospitais públicos de Campinas estão fechados para qualquer caso que não seja emergência ou Covid. Não há internação e os atendimento ambulatoriais foram reduzidos à quase nada. Exames deixaram de ser realizados, tratamentos deixaram de ser executados. As filas de pacientes oncológicos vêm se acumulando em todas as áreas, e muitos profissionais de saúde envolvidos nesse atendimento vêm sendo subutilizados, alocados para outras funções, muitas vezes longe de suas áreas de conhecimento.
Novamente, reitero todo meu respeito e admiração pelos esforços que vem sendo feitos por muitos profissionais de saúde e gestores em relação à essa nova doença – Covid-19 - sobre a qual pouco conhecemos ainda e que muitas vezes tem evoluções imprevistas e trágicas, mas e as outras doenças? Quem vai assumir a responsabilidade de deixar crescer esse número aterrorizante de pacientes e famílias que terão de conviver sem qualquer esperança com um câncer avançado, uma doença mortal?
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