Cirurgia Digestiva e Colorretal

Meus 28 anos de SUS

Nos últimos 28 anos venho tendo a oportunidade de fazer parte da vida de milhares de pessoas que necessitaram de diagnóstico ou tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

No começo, durante a faculdade, não nos damos conta da imensidão desse privilégio. Alunos de Medicina necessitam do contato com pacientes e doenças para aprenderem. Sem eles, o ensino das técnicas de história clínica e exame físico não podem ser ensinadas; resultados de tratamentos não podem ser acompanhados e cirurgias e outros procedimentos não podem ser aprendidos. No início é muito difícil dimensionar o que significa a esses pacientes a nossa presença como alunos, depois residentes e depois especialistas, desde os nossos primeiros contatos com eles.

Nós somos a sua interface com a expectativa de diagnóstico ou a perspectiva de tratamento. Para nós, médicos, no entanto, o tempo é capaz de fornecer a compreensão do valor inestimável que essas pessoas tiveram nas nossas vidas. Foi por causa delas que aprendemos, que ensinamos. Foram elas que nos trouxeram a melhor sensação que nossa profissão pode trazer, a de gratidão.

O Brasil talvez seja o único país entre os grandes do mundo que tem uma política de acesso universal à saúde. Não importa se é rico ou pobre, jovem ou adulto, o SUS acolhe qualquer paciente que precise de assistência à saúde no Brasil. Mesmo que seja um estrangeiro em viagem, sem nenhum vínculo com o país, mesmo que não pague impostos.

O desenho administrativo e assistencial do SUS é espetacular. A concepção de assistência gratuita bancada pelo Estado nos níveis municipal, estadual e federal é muito interessante, e se funcionasse como foi concebido, seria excelente. Na prática, após algumas dezenas de anos da sua criação, o SUS mostra sinais de dificuldade para funcionar como deveria, especialmente em centros de maior complexidade, como é uma cidade como Campinas. Hospitais com dificuldades financeiras e unidades básicas de saúde mal assistidas acabam gerando uma assistência deficitária a boa parte da população necessitada, e que se traduz por horas de fila no atendimento, meses na espera para consulta e exames, às vezes anos para uma cirurgia.

Nesse sentido é angustiante ser médico da equipe que assiste aos pacientes portadores de câncer de intestino. É uma doença cuja evolução e prognóstico depende muito da rapidez com que o tratamento é institutído, e o tratamento prioritário é a cirurgia, muitas vezes associado à radioterapia ou quimioterapia. A definição da conduta depende do estadiamento da doença, que é basicamente determinar, através de exames, qual a extensão da doença para que a melhor conduta possa ser tomada.

O que vemos, no entanto, é que o paciente que consegue chegar a passar em uma consulta, habitualmente está atrasado em vários meses, com diagnóstico feito há muito tempo e muitas vezes com doença já avançada. Quando solicitamos avaliações de outros especialistas ou exames, há dificuldade, e o paciente volta para definir a conduta algumas vezes apenas depois de muitos meses. Quimio e radioterapia tem sido tratamentos de acesso cada vez mais difícil, pela ausência de recursos humanos, materiais e de local para tratamento. E nossa capacidade de resolução das doenças dos pacientes acaba tropeçando em diversas dificuldades.

Dessa maneira, quase sempre se passam muitos meses entre o início dos sintomas e o início do tratamento, levando algumas vezes à perda da possibilidade de tratamento de muitas pessoas. Recentemente houve uma determinação federal que exige que pacientes com câncer sejam tratados com prioridade e dentro do prazo de 30 dias a partir do diagnóstico. Na prática, enquanto não houver mudanças estruturais importantes, isso não vai ser possível a todos, e pacientes continuarão a perder a oportunidade de serem tratados.

Ainda assim, é nossa obrigação, como médicos, fazer o melhor possível aos pacientes, e todos aqueles que vêm com diagnóstico de câncer de intestino são atendidos com a maior celeridade possível, para que possamos triar e prepará-los para tratamento específico, mesmo com todas as dificuldades. Esses pacientes são pessoas que têm no SUS a sua única possibilidade de tratamento, e uma única luz no final do túnel da doença. Todos os pacientes que conseguimos tratar são tratados com o máximo de empenho da equipe. Não podemos deixar que essa esperança seja ameaçada. Além de nos trazer grande satisfação e gratidão, é nosso dever moral devolver agora a esses pacientes, na forma de tratamento humano e com dedicação, tudo aquilo que eles nos deram no passado como aprendizado.

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