A escola em que estudei é a mesma em que meus filhos estudam. Todos os anos acontece por lá uma feira de profissões. Nesse dia, os alunos têm a oportunidade de conversar com vários profissionais de diversas áreas sobre as profissões e tirar dúvidas. Eu fui acompanhar meu filho em uma das salas em que alguns dos meus colegas médicos foram convidados para conversar com os alunos. A ideia era falar sobre a prática diária da Medicina. Uma garota do segundo ou terceiro ano do ensino médio pediu a palavra e perguntou qual a diferença para o médico trabalhar no sistema público ou privado.
Muito bem! Estou formado há 25 anos e durante a faculdade o ensino prático com pacientes foi a partir do 4º ano. Logo me veio a conclusão. Convivo com o SUS há cerca de 28 anos. Aliás, atualmente trabalho no SUS atendendo pacientes com câncer colorretal e tenho bastante trabalho na clínica privada, mas confesso que nunca me fiz essa pergunta ou comparação.
Qual a diferença de lidar com pacientes do SUS ou privados?
O serviço público de saúde no Brasil é onde falta tudo. Salvo raras exceções. Falta gaze, falta água, curativo, fio de sutura. Falta vaga para internação, exames de todos os tipos. E falta o que mais for possível pensar. É uma estrutura extremamente falha, que para o trabalho médico pode ser muito difícil. Atender assim pode trazer grandes problemas ao paciente e algumas frustrações ao médico, que sabe que precisa oferecer mais e não pode, por uma insuficiência do sistema. Profissionais de todas as áreas em unidades de saúde e hospitais trabalham bravamente para reverter as dificuldades; ajudando o médico que é o responsável final pelo atendimento com qualidade ao paciente, independente da estrutura disponível.
Cabe ao médico determinar os exames e liderar as condutas da equipe. Quem recebe os louros pelo sucesso, mas também a quem recai a culpa do fracasso. E assim acaba tendo que se doar mais que o possível para fazer o melhor ao paciente.
E porque trabalhar no SUS, se a falta de materiais e equipamentos é constante e a remuneração é baixa?
Uma vez ouvi de um médico amigo muito querido: atender ao SUS é uma missão!
O médico habitualmente transita numa zona muito tensa e muito difícil, muitas vezes com o paciente entre a saúde e a morte. Sempre mirando na saúde e no sucesso do resultado, mas muitas vezes não conseguindo segurá-lo nesse caminho. Num outro dia em que ouvi um médico numa palestra falar sobre a gratidão, foi que percebi a resposta à pergunta. Aí estava a chave!
É realmente uma missão. Encaro dessa forma. Não só porque é a única forma de se justificar trabalhar em condições inadequadas e com remuneração ruim. Nem só porque acredito que, de fato, temos uma contrapartida moral de devolver em forma de tratamento o que nos foi ensinado por essa população sofrida que de maneira muito sublime nos permitiu em algum momento a honra de aprender medicina com eles.
Mas, principalmente porque são esses pacientes que dependem do SUS, simples e carentes, desprovidos de condições econômicas, que não se contaminaram com a complexidade dos relacionamentos sociais, os que têm mais facilidade de expressar com clareza e simplicidade um dos sentimentos mais nobres que se pode ter: a gratidão. E é, em última análise, a gratidão dos pacientes o combustível que move nossos motores.
O médico é um ser humano, que se emociona com as complicações de tratamento e eventualmente com perdas, especialmente aquelas que poderiam ser evitadas num contexto fora do que o SUS nos oferece de condições. E por isso o pagamento para essa dedicação tem que ser muito potente, muito intenso e muito alto. Não há dinheiro que esteja à altura, e apenas o sentimento muito forte e muito nítido de gratidão do paciente é capaz disso. Eu tenho pacientes muito simples, mas que se esmeram em mostrar a sua gratidão. Algumas vezes gratidão vem pelo resultado de um tratamento, mas quase sempre não depende do resultado, mas de proximidade e respeito com que foi tratado.
Uma senhora me levava sempre um maço de rúculas da sua horta junto com 2 ou 3 balas, mesmo que não tivesse consulta. Outra me retribuiu o tratamento com uma carta escrita à mão com 3 ou 4 linhas de caligrafia trêmula e irregular, que sei terem sido difíceis de escrever, mas muito verdadeiras. Em outra ocasião um marido em lágrimas me abraçou longa e silenciosamente após receber a notícia de que a cirurgia de sua esposa havia corrido muito bem.
Uma outra, num momento em que percebeu que seu câncer não a pouparia por muito tempo, retirou seu anel do dedo para que eu colocasse nas mãos da minha filha, em retribuição ao cuidado que tivemos com ela (mal sabem eles o tamanho do prazer que o médico tem de poder interferir positivamente, trazendo cura, ou ao menos conforto, às suas vidas...). Nunca houve a necessidade de demonstrar com espetáculos, ou grandes presentes. Esses anos todos de prática médica mostraram que a gratidão menos ruidosa, muitas vezes silenciosa, é linda e mais do que suficiente. São sinais de que a nossa inegável missão com o atendimento ao SUS vem sendo cumprida de acordo.
Todos esses atos maravilhosos e simples de demonstração de sentimentos, que são muitas vezes difíceis de nominar, trazem também a nós muita emoção e sensação de gratidão. E esse é um sentimento difícil de se explicar para quem não é médico.
A gratidão é um sentimento que só traz coisas boas pra qualquer pessoa e que deve ser sempre cultivado por isso.
Foi nesta hora que meu pensamento voltou a sala da escola e pensei:
Nós médicos, somos viciados em gratidão.
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